terça-feira, 17 de novembro de 2015

Matéria e forma: questões ociosas ou necessárias?

Leio um livro, assisto uma série, converso com os amigos, estou em um evento social. Em muitos casos como esses há várias coisas implícitas, pressupostos em cima dos raciocínios, subtilezas escondidas no simbolismo do ambiente, malícias visando intenções inconfessas, etiqueta com valores sociais subentendidos. Muitas pessoas consideram ocioso discutir coisas que antecedem o relacionamento direto entre as pessoas, os fatores que preparam a arena ou palco da vida (ou encenação) diária.

As ações de nossa vida, ao direcionarmos o nosso destino, são a finalidade. Mas o ambiente gera condicionantes e esses condicionantes são preparados para facilitar certas finalidades: a moral social, os costumes familiares, as sequências dos eventos históricos, um pequeno negócio que me beneficiará amanhã ou me influenciará por toda minha vida. Assim como um pingo de aquarela derrubado no papel, a finalidade é um ponto que se espalha concentricamente e alinha o que está ao redor. Quando não enxergamos o centro, o que está ao redor indica ou influencia a convergência para o centro.

Por isso aqui vamos estudar assuntos ociosos, mas que devem ser refletidos e têm implicações bastante concretas na vida.




MATÉRIA E FORMA

A matéria pura representa as infinitas possibilidades: como é tudo, é ao mesmo tempo nada e não pode ser percebida (não é um inteligível). A forma pura representa toda ideia que não tenha qualquer resquício de matéria, do qual o que mais chega próximo é a matemática: a forma é justamente o que a mente consegue inteligir. Então a matéria é o que permite dar existência múltipla a uma mesma forma, que por sua vez podemos inteligir abstraindo os aspectos acidentais entre os vários objetos de mesma essência.

Falando em exemplos. Uma cadeira é feita de madeira. A madeira é análoga à matéria bruta, pois poderia ser moldada com as formas de outros objetos: uma mesa, uma porta, um pilar. O que me permite reconhecer que esses objetos são diferentes (cadeira, mesa e porta) é sua forma, que abstrai a matéria, que poderia ser metal ou plástico. E posso subir de nível em que o objeto que representava a forma se torna matéria. Uma casa contém pilares, mas estes podem ser substituídos por alvenaria (paredes) autoportantes. Por outro lado, a madeira tem componentes químicos como o carbono e o nitrogênio, que por sua vez são compostos por elementos (matéria) como prótons, nêutrons e elétrons: a forma destes se arranjarem, as quantidades de cada um.

Me deparei com o Livro Enigma Quântico (Wolfgang Smith) e com a seguinte tese: procuravam micropartículas, cada vez menores, cujo estado se expressa em distribuição de probabilidades, mas e se o a realidade for somente a distribuição em si e a singularidade (surgida por excitação) seria a materialização dessa distribuição em certo estado? A mecânica quântica chegou no nível físico ao que no nível filosófico seria a matéria pura. A matéria pura é equivalente aquilo que pode assumir QUALQUER forma possível, ou seja é a potencialidade infinita: e quando se considera que não há uma partícula, mas que a distribuição é que é o ente existente, isto seria a matéria pura.

Dentro das querelas filosóficas se contrapõe o platonismo ao aristotelismo. Eu não vejo contradição, acredito que possa haver  um caminho a trilhar entre o mundo das ideias a priori de Platão e o método cognitivo de Aristóteles, que intelige a forma a partir da realidade. Platão pra mim é o mundo do ponto de vista do criador: nós mesmos, ao concebermos e executarmos algo, temos a ideia antes em nossa mente. Aristóteles é o mundo do ponto de vista do homem, que foi apartado da convivência celeste (das formas), e precisa reconstruir o mundo das ideias a partir dos particulares: as impressões vêm pelos sentidos, são manipulados (e lembrados) pelas imagens e delas se extraem os conceitos.

A limitação do intelecto humano é que traz todo o relativismo e subjetivismo alegado pelos céticos. A linguagem humana é limitada: ao fazer conceitos, emprestamos termos através do processo da analogia, criamos objetos (físicos ou conceituais) que coincidem: o mesmo objeto com nomes (essência, funções) diferentes, ou dois objetos diferentes (em essência) com o mesmo nome. Mesmo porque, se enxergamos a forma como o princípio da unidade e a matéria como o da multiplicidade, podemos enxergar uma pirâmide hierárquica: seu topo são as ideias mais universais e eternas (forma pura), abaixo vão surgindo ideias que têm progressivamente mais a marca da matéria, até a base que é a multiplicidade infinita da matéria pura. Quanto mais baixo no nível da pirâmide, mais os conceitos são particulares e relativos, dados a ambiguidades conceituais.

Essa demonstração é muito breve. Mas tendo os conceitos bem organizados na mente, a inteligência fica à prova dos erros modernos. Um exemplo é o de Kant, que nega a metafísica, vendo somente fenômenos sem sentidos, organizados pela ordem interna do sujeito. Ora, o universo e a linguagem são co-proporcionados. Se há linguagem em comum, se posso expressar minha teoria, é porque há uma unidade metafísica  que relaciona os sujeitos pensantes e as ideias. Se é possível pensar, é porque o universo tem uma ordem interna (e não só o sujeito): seria impossível extrair qualquer mundo lógico se o universo  fosse o total caos, como se do aleatório surgissem fenômenos (o que aparece aos sentidos) que pudessem ser ordenados pelo sujeito e além disso comunicados com certa universalidade aos outros. De forma que a ideia está tanto no objeto quanto na potencialidade do sujeito: um é inteligível, o outro é inteligente (aquele que lê/colhe dentro).

ESPÍRITO, ALMA E CORPO

O homem tem em si componentes que podem se separar. Seu corpo é o análogo à matéria. Cada homem é um ser singular, é uma espécie distinto dentro do gênero humano, ao contrário dos vários animais de uma espécie (ex: cachorro) pertencente a um gênero (mamífero). Então esse diferencial de cada homem é o análogo à forma, chamado de espírito, pois é o que dá movimento ao corpo. Que há uma separação de componentes que se integram formando o homem, comprova-se com a morte: aquilo que dá o movimento sai. Só que espírito (universalidade das formas) e corpo (mutabilidade da matéria) são opostos incomunicáveis, necessitando de um intermediário: a alma, que contém o eterno e o passageiro, o variável e o constante.

Essa estrutura ternária encontra-se em muitos outros lugares, com meditações próprias e também análogas. A Santíssima Trindade: o Pai gera o Filho e imediatamente surge o amor mútuo (o Espírito Santo). Os tons: a Tônica gera a si mesmo na Oitava (proporção 1:2) indefinidamente e só com a Quinta (proporção 2:3) se tem a medida da distância e se pode construir a escala (a criação, tal qual a do Universo). Vários sistemas independentes e interrelacionados: harmonia, melodia e ritmo; economia, política e moral/religião; pensar, sentir, querer; sistemas metabólico, cardio-respiratório e neural. Existe uma infinidade de relações ternárias para meditação.

O mundo do corpo é o mundo dos fenômenos sensíveis: do quente, do frio, da fome. O mundo do espírito é o mundo das formas que dão movimento: as ideias abstraídas de matéria, a mente. No meio de campo está a alma, com suas imagens e a afetividade a elas ligadas. A alma é o mundo tipicamente humano: por um lado os sentidos corporais são completamente sem sentido; por outro lado os conceitos abstratos não dizem respeito ao homem individual, mas valem pra toda a humanidade. Só na alma se conjugam os fatores contingenciais, gerados pela configuração específica do sujeito (ambiente, família, cultura, território, clima), e os fatores universais das discussões humana. É na alma que se passam as paixões, as simpatias e antipatias, a convivência social/moral: é ela que permite que eu viva minha realidade exclusiva e ao mesmo tempo universal.

Da existência do espírito, deduz-se existirem outras formas de seres, cuja composição seja meramente espiritual. Assim como temos plantas e animais, com faculdades a menos que o homem, há que se pressupor seres superiores (hierarquia celeste), o "mundo das ideias" (das formas), em que estão prefiguradas as possibilidades das relações individuais, morais/sociais ou até mesmo as históricas. Esses seres reduziriam a distância infinita entre os homens e a Santíssima Trindade, contendo em si a proteção individual, dos povos, dos tempos. Os seus nomes são Anjos, Arcanjos, Querubins, Serafins etc.

PAUSA PARA ALGUMAS CONCLUSÕES

Até aqui ressalto algumas coisas contra os céticos e niilistas, cujo único argumento é a relatividade  e a subjetividade: o mundo tem sentido. A multiplicidade das coisas gera um problema linguístico: cada ser humano participa de uma pequena parcela da realidade (no tempo e no espaço) e não consegue conceber conceitos unívocos, que valham pra todos. Então, aquilo que se nos mostra como contraditório, na verdade só o é aparentemente. E o motivo é simples: a limitação do intelecto humano em abarcar toda a realidade (atributo exclusivo de Deus). O que ocorre é a diferença de perspectivas, conclusões com informações faltantes e compartilhamento dos termos para conceitos diferentes. Só. A multiplicidade e limitação é inerente à nossa condição.

TENTAÇÕES: O ÓDIO CONTRA A ORDEM

Em cada um dos componentes do homem surgem tentações. A tentação é a dúvida, é a hesitação, é o desejo da morte e da escravidão. A ordem é a disposição de cada coisa em seu lugar e expressa-se externamente pela hierarquia (das coisas e dos valores) e internamente pela pureza (paixões ordenadas de forma disciplinada). O universo e o interior do homem são reflexos mútuos: a desordem interna do homem gera injustiça social e prejuízo ambiental; a desordem externa gera incompreensões e doenças. A beleza do mundo é reflexo da retidão das intenções dos homens: assim como um homem digno e honesto transparece isto em suas feições, os prédios arrumados e as instituições sociais justas refletem a beleza do ambiente. Para este tópico e o próximo, me inspirei no livro Encontro com o Mal (Sergei Prokofieff).

Através do espírito, do mundo das idéias, o homem é tentado por ilusões que não correspondem à ordem, à realidade. O pecado original é justamente a sugestão de uma desordem: "sereis como deuses" (Gn 3, 5). Ora, o homem não pode se colocar acima dos outros (como deuses) em razão do orgulho, pois aí a ordem. A serpente, orgulhosa de suas luzes, Lúcifer (=portador da luz, em latim), se orgulhou de si mesma e inoculou essa luz venenosa na cabeça do homem: eis a vontade do poder, da fama, da vaidade. São ilusões que afastam o homem da ordem criada, em que cada um tem seu humilde lugar a serviço de todos. Para ser mais convincente, ele sugere que não há leis, que não há espírito, que não há universais, não há regras: eis a autonomia (=auto legislar) demoníaca, em que digo pra mim "não preciso encontrar um preceito universal, eu sei o que é bom pra mim". Daí surgem várias filosofias que negam o espírito, negam a alma, negam a metafísica (o transcendente), que afirmam o materialismo mais seco e sem sentido. Essas filosofias trazem a ilusão (vistosa) da desordem de posição: ou sou importante demais, ou sou pequeno demais (baixa auto-estima).

Através da alma, principalmente nas vontades mais inconscientes, é semeada a desordem interna. Eis que o Diabo (=acusador, em grego) coloca uma sugestão, caímos e ele vem e nos acusa: "você não consegue superar o desafio da continência, do controle das paixões, você é meu escravo, não é capaz de Deus, você não é capaz de dizer não, sou eu que controlo você, pra satisfazer seus desejos mesquinhos você fará injustiças na sociedade". A virtude é obnubilada, a retidão se torna obtusa: surge a vergonha de olhar olho no olho das pessoas, só enxergo o cinismo e a malícia em toda a parte, ninguém é capaz do amor desinteressado. As figuras que povoam o imaginário das pessoas, que deveriam estar limpas das máculas da malícia para que fosse concebido o bem comum, acaba distorcendo a moralidade, o cuidado, o respeito: surge a frieza, o indiferentismo, o ressecamento.

Através do corpo, na opressão física, na desordem do mundo, o homem é tentado pelo desespero. Satanás (=oponente, em hebraico) construirá armadilhas para que afirmemos a nós mesmos: "somos pequenos demais, o sistema é muito maior do que o bem que eu posso semear, o mundo está perdido". Enxergamos as manifestações atuais mais absurdas: o Estado Islâmico mata inocentes de forma sanguinolenta e ostensiva (para escandalizar e oprimir o imaginário), escravidão sexual moderna (poupo de escrafunchar detalhes), sacrifícios humanos em seitas demoníacas (campos de concentração, oferta a deuses pagãos, gulags, "microondas" da favela). Fora a corrupção nas diversas instituições que, de tão disseminada, desanima qualquer um em semear a virtude. Parece que o mundo e a cultura estariam fadados à morte, a culpa está fora e nada tenho a fazer com minhas forças: surge a impotência.

SOLUÇÃO CONCRETA PARA O PROBLEMA DE TODAS AS PESSOAS

O problema é a desordem, cujas tentações precisam ser vencidas. A ordem é cada coisa em seu lugar. Daí surgirá tanto a harmonia do homem consigo mesmo (e com Deus) e a harmonia entre os homens. Se já "não sou eu, mas Cristo em mim" (Gal 2, 20), se o desapego estiver disposto a beber do mesmo cálice, se o amor for incondicional, daí teremos substrato para a irmandade em Cristo e a filiação de Deus: eis a ordem.

Para vencer Lúcifer, é preciso infundir a razão com o calor do amor. A lógica das coisas não é seca e mecânica, mas envolve o outro, a consideração pelo outro existir. "É verdade que [o homem] pensa com a cabeça, mas o coração sente a claridade ou escuridão do pensar" (Rudolf Steiner). Nem toda informação veio pelos sentidos e foi reunida em conceitos pela cabeça: o coração se comportou como um sentido, acrescentou uma informação: a bondade (calor, amor) do pensamento. Com isso o homem adquire a capacidade em atingir cada vez mais pensamentos sobre a realidade espiritual, que envolve muito mais a bondade do que o mecanismo.

Para vencer o Diabo, é preciso exercitar a imaginação com as imagens da virtude. Essas imagens são muito menos daquilo que as ações tem a ver comigo (e com a desgraça dos meus pecados), mas muito mais com as implicações das minhas ações no meio circundante. É a capacidade de simular em imagens o impacto moral que as pequenas ações podem trazer num futuro próximo. Em certo sentido, entendendo as relações causais difusas entre essas imagens, é possível adquirir a sabedoria de ver qual papel cumprir para corrigir certos problemas locais da sociedade. Essas imagens são a única forma de expressar as relações entre as pessoas, que não cabem nos conceitos abstratos do espírito e nem na matéria sem significado dos sentidos: são imagens da justiça, da consideração, da moralidade, da harmonia entre as instituições.

Para vencer Satanás, somente a pobreza de espírito: reconhecer a impotência, que não somos autônomos e precisamos de ajuda. É a humildade extrema, que permite que o desespero se converta em esperança. Essa impotência envolve tudo: tanto minhas forças físicas para mover a realidade ao meu redor, quanto a minha agudeza intelectual para conceber soluções para os sistemas (idealismos). A impotência é não conseguir confiar nas minhas forças, não por escolha, mas porque o mundo parece impor isso a mim. É a confiança e o amor total e incondicional em Deus (e na sua providência), para que aconteça a ressurreição, o impossível.

Temos vários papéis. Reconhecer Jesus Cristo como redentor da miséria humana, afastando todos os paganismos (falsos deuses, idolatrias) e criando uma individualidade livre e que fomenta a liberdade. Fazer o Cristo nascer em nós, assim como o Espírito Santo semeado no solo fértil (receptivo, obediente e humilde) de Maria Santíssima. Reconhecer e resistir ao mal, como ente existente independente, mas cuja semente foi semeada em nossa alma (no pecado original), a qual devemos renunciar (mesmo nos detalhes mais inconscientes). Esforçar por semear a harmonia também pela moral externa, dentro dos âmbitos (independentes em seus princípios) político-jurídico, econômico e cultural-religioso.

Com isso podemos ver que nem todos os meus problemas têm a solução em mim. Para algumas coisas eu dependo do outro ou da providência. Da mesma forma, o que eu faço não tem implicações meramente no meu redil (como prevê a moral liberal, na qual posso fazer o que quiser desde que não afete os outros: não existe o não afetar os outros), mas há ecos fora, na saúde do ambiente. A questão não sou só eu, mas a minha posição na harmonia do mundo, regida por Deus. Há que se enxergar as realidades espirituais, que avançam além da mera materialidade.

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