quarta-feira, 29 de julho de 2015

Consumo

Temos uma imagem dele marcada pelo ato da compra, como se a mágica de ter preenchesse o nosso ser de felicidade. Orbita um tanto ao redor da gula, ao impor uma necessidade insaciável de algo, mas também um pouco na avareza, pois o dinheiro é o lubrificante dos vícios. Esse consumo insaciável pode ser simbolizado como a mãe de nossas necessidades, a água (Jo 4, 10), mas a insaciedade atravessa vários casos desapercebidos.

Também a gula é vista como o mero ato de comer além da conta, mas seu significado está na insaciedade geral. Muito e se reflete, principalmente nas produções culturais (como filmes etc.), sobre um pessimismo na vida, esta que não leva a nada. A crítica gira sempre em algo no entorno de: "não viva como se apenas o tempo passasse, não viva como escravo do que a sociedade lhe impõe, mas procure o sublime, aquilo que o realiza". Mas as representações falham ao deixar aberto à subjetividade o que realizará a pessoa.Dizem por aí que ser é melhor que ter. Por outro lado, uma vida sem sentido parece se refugiar nos momentos em que "fruímos o instante", carpe diem, afinal. A mesma crítica deixa aberta para que as pessoa fruam como lhes aprouver, na singeleza de seus gostos. No entanto até essa realização do homem tem algo de objetivo e universal. Por isso que essa representação crítica falha ao fim, no final dá uma resposta que acaba ressaltando uma vida sem sentido, um niilismo.

Nesse anseio, nessa gana de chegar em algum lugar e de não ter uma vida em vão ou mágica, é que as pessoas buscam suprir sua insaciedade. E essa gula não cessa de pedir momentos mágicos e intensos. Uns dizem que "temos que ter histórias pra contar para nossos netos". Nessas histórias estão aqueles momentos intensos e não ordinários em que a realidade pareceu ser algo maior do que ela é. Surge aí a gula melancólica, em que ao menos a pessoa teve lá seus momentos de felicidade.

Por isso que se diz que pra viver é preciso pouco. Por que eu precisaria de momentos sublimes se a realidade é sempre um presente em seu todo?

Hoje o evangelho/homilia falaram do sermão da montanha (Mt 5, 1-12). Nesse recital de valores, nada de necessidade animal (fisiológica) é citado. Justamente os bens a ser cultivar na alma (a água viva), é que representam aquilo que é sumo humano: confiança em Deus e não nas "riquezas ordinárias" (os de coração pobre), sensibilidade com a miséria humana (os que choram), a brandura (os mansos), a correção de princípios (os com sede de justiça), sensibilidade verdadeira com a situação dos outros (os misericordiosos), a inocência que só conhece os bons desejos (os puros de coração), a paz mesmo na agressão (os pacíficos), a tenacidade ante a agressão (os perseguidos pela justiça de seu proceder), a tenacidade ante mentira (os caluniados).

Isso também é uma forma de reescrever os dez mandamentos numa outra perspectiva: ao invés de comandos e proibições, estados perfeitos de espírito. Se ser é melhor que ter, o melhor jeito de ser é servir.

E a santidade, a inviolabilidade da pessoa, está em não abrir mão dos bens da alma. Não tê-los é estar em escravidão. Pois essa insaciedade é o que move o infeliz, como o faz o senhor de escravos ao dizer "vá ali, faz aquilo". E o interessante é ver a história da humanidade como a história da escravidão. Cada um dos sete pecados capitais são vícios embasados na escravidão por meio de falsidades. E a escravidão gera escravidão, pois há a voluntária e a compulsória.

Ao se entregar ao vício, uma pessoa deliberadamente se escraviza. No entanto, pra sustentar esse vício, a pessoa cria toda uma rede de injustiças que tiram a dignidade dos outros: escravidão imposta pelo poder. A gula não é nada mais que o desejo pelo supérfluo e ela mesma acaba movimentando uma economia de vícios e injustiças: drogas, luxos, prostituição, relações trabalhistas indignas.

Mas voltemos ao consumo, já que os quatro últimos parágrafos foram um parêntesis. Ao invés de lapidar uma alma saciada, satisfeita, pessoas andam ávidas por preencher a vida e dar-lhe um sentido pelo volume. Para si mesmo bastam poucos bens, que os trabalhos ordinários podem proporcionar. No entanto se quer aquele momento a mais, aquele sabor diferente, aquela vivência intensa. Chego a ver o cúmulo de culminarem a vida em torno da vida sexual (não falando de escolhas desviadas). Também tem o ridículo que é viver uma vida de suplementos, ou mesmo de hipocondria: a segurança da saúde. E tem também o consumo do tempo: o tempo que passa sem vermos, numa rotina que consome toda a nossa reflexão e contemplação.

Se as pessoas só parassem para garantir o essencial, o supérfluo não as escravizaria. Não garantindo o essencial, o trocam pelo supérfluo. Hoje vemos alimentos que não alimentam mais (alimentos sem vitalidade e substância); substâncias tóxicas assimiladas por remédios, comida e cosméticos (composições crescentes de minerais e petróleo); casas que são improvisos, mas forradas de um exército de eletrônicos inúteis. A própria beleza foi esquecida pelo utilitarismo do consumo: paisagens, rios limpos, ar puro... tudo em segundo plano.

Quando o supérfluo troca de lugar com o essencial, o essencial vira bem dos privilegiados: é mais fácil ter um bom celular do que uma boa refeição. E o que falar das relações humanas, que criam os verdadeiros bens para a alma? Esquecidas. Cada um fechado no seu egoísmo, que é permitir que entre aquilo somente que se vai consumir. Se o outro é produto, consumamo-lo.



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Postado no facebook em 03/11/2013

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