quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Combinação

Sempre tenho martelado isso em minhas conversas particulares, que é a maneira de como as coisas devem necessariamente combinar entre si. Não que normalmente as coisas não combinem, mas é com relação ao fato de as pessoas não atentarem que as coisas combinam. O que seria isso?

A grande diferença é observar o que que são as coisas que não combinam e como elas se separam. A vida é formada de vários ambientes: ou quando a criança passa o dia na escola, ou o adulto o seu tempo trabalhando, um um happy hour no fim da tarde num barzinho e com cerveja, uma casa noturna com música que leva ao transe, uma igreja no domingo, um almoço em família. Cada um desses ambientes se organiza de forma que sua atividade, seu propósito, fiquem propícios.

Cada ambiente, junto de seu propósito mais ou menos identificável, leva toda uma caracterização. Isso implica em várias características que combinam entre si: o horário do encontro, a música de fundo (e suas características como: letra, volume, ritmo, dissonância), a iluminação ambiente, a quantidade de pessoas, o linguajar, a comida (se houver), as roupas utilizadas, a idade das pessoas etc. Tudo o que foi listado aqui são combinações de aspectos e a nossa sociedade é levada a crer que na nossa vida podemos juntar qualquer dessas qualidades.

Essa dissociação nasce de outra, que é a da forma e conteúdo, como se as pessoas pudessem compor as coisas ao bel prazer, seguindo até a extrema arbitrariedade de combinações. Mas o bom senso mostra que não é assim, e as coisas se organizam harmonicamente em seus ambientes em geral. Mas bem que poderia ser melhor em alguns casos.

Pois cada ambiente é preparado para um propósito, seja ele mais ou menos turvo. Ora, até existem profissionais que cuidam de ambientes, de festas etc. Só que o propósito de uma ação está para o conteúdo, assim como essas qualidades do ambiente estão para a forma. Alguns acham erroneamente que é possível fazer qualquer combinação. Inversamente, a crença inconsciente moderna é que adotar certas características não influenciará o propósito das ações.

Estou falando abstrato, mas vamos aos exemplos. Se estamos num almoço em família, o linguajar será restrito e respeitoso. Se estamos em um baile funk, as músicas e as roupas serão despudoradas. Se estamos numa igreja, o clima será de introspecção e contemplação. Se estamos no trabalho, o clima será de seriedade. Negar esses arranjos é minar o propósito, é gerar um atrito. Por outro lado, consumir cultura contra o decoro, usar roupas de determinada tribo, reduzir o vocabulário a formas de gueto etc., cada uma dessas posturas propiciará certas tendências em detrimento de outras.

Essa é a principal verdade que uma sociedade politicamente correta procurará negar. Pois quando uma pessoa começa a associar condutas, ela é taxada de preconceituosa. Eu particularmente sou a favor do preconceito, pois ele não é nada mais que a análise probabilística de situações: quando certos sinais aparecem, é de se esperar certas consequências (então nos preparamos para elas). Esse é o preconceito bom. O preconceito mau é daquele que se fecha a verdades distorcidas e pejorativas, que se negar a abrir ao outro por causa de um senso de superioridade.

Mas o preconceito está proibido na nossa sociedade de conceitos maniqueístas e de massa, de rótulos e de grupalismos. O bonitinho hoje é ver tudo e aceitar. Não se pode ter aversão a mais nada, bem como não mais se pode almejar o universal.

Um primeiro efeito deletério disso tudo é a separação de pessoas dentro de uma mesma pessoa: no trabalho sou um, com os amigos sou outro, como casal sou outro, na igreja sou outro. Ora, a pessoa é sempre uma só. Quem se maquia demais, apenas se esconde e não mostra a verdade. Que compromisso eu posso ter com outra pessoa se ela não pode nem ver quem eu sou? Homens são máquinas afinal pra precisar se comportar e comunicar através de protocolos?

Esse efeito está dentro da fragmentação geral da sociedade, que basicamente separa o todo em feudos cada vez menores: o extremo é o feudo de si, dentro do qual ninguém mais entra. Afirmar o próprio ego - que no fundo não é mais que o amontoado de gostos arbitrários (ou mesmo sem sentido) - se tornou algo maior que o bem comum. Sendo que o próprio bem comum é imaginado através do bem igualitário disforme, em que as pessoas não são tratadas como sujeitos concretos, mas como uma humanidade abstrata, maquinificada, anônima.

O segundo efeito é o mau gosto disseminado, um mau gosto que dificulta e desanima. Pois todos esses aspectos que parecem periféricos, meros adornos, na verdade são o reflexo estético que engrandecem as coisas, e as tornam mais favoráveis. Será que uma sociedade atroz, injusta, insegura, desconfiada, não foi cultivada distante do belo? Afinal, as coisas não tem precisado combinar mesmo...

O terceiro efeito é o privilégio dos vícios. Pois as grandes virtudes são cultivadas paulatinamente, a custas de um lento lapidar, sendo que as más condutas se espalham pela desorganização e caos. Fazer alinhar e combinar é manter o zelo e o cuidado, é segurar as coisas com vigor, é não perder o terreno para a decomposição. Nunca poderá ser construtiva uma sociedade direcionada para as divergências. E, para isso, não precisa muito, já basta relativizar a possibilidade da harmonia para incentivar a desagregação das coisas.

Portanto, as coisas combinam e devem combinar. Muitos sabem disso e fomentam o desconhecimento para fins obscuros, que é a fragmentação social. Primeiro incutem na pessoa uma falsa ideia: "você é isso" (sendo que o homem é justamente a potencialidade infinita e não uma limitação desse tipo). De preferência, essa falsa ideia deve ser plural: cada um deve ter a sua, de forma a demonstrar o quanto cada um tem de personalidade. Depois, basta mostrar o quanto essas ideias são conflitivas entre si. Não basta que cada um tenha uma falsa ideia, mas o estoque de ideias de cada pessoa deve ser a combinação mais absurda possível: isso vai mostrar uma personalidade mais forte, mais ousada. Eis aí a alquimia para o imbecil.



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PS: Como exercício para reflexão, cada um pode pensar em cada aspecto/qualidade que uma coisa pode ter. Em primeiro lugar, pensar a qualidade por si só e ver que coisas elas favorecem e desfavorecem; por exemplo, um ambiente pintado de uma cor; um evento a luz de velas; uma etiqueta para determinado encontro. Em segundo lugar, ver se esses aspectos combinam com os princípios que você segue; por exemplo: "sou uma pessoa que gosta de indiretas, logo meu discurso combina mais com ambientes escuros. Em terceiro lugar, associar coisas (finalidades) e as qualidades que combinam com elas; por exemplo, num ambiente de revolta, de pichação, um linguajar culto não combina. Em quarto lugar, tentar ver coisas que combinam ou não por causa de afinidade ou conflito entre suas qualidades; por exemplo, a atividade de prostituição combina com a de tráfico, por questão de várias qualidades em comum: reificação (coisificação) do corpo da mulher combina com a perda de consciência através das drogas, ambos são ilícitos, ambos convivem com a violência (da mulher, da saúde/mente, da sociedade).

Exercitar nesses pensamentos é análogo a uma capacidade que potencializa a inteligência, que é a de associar ideias. Isso ajudar a fazer analogia entre as coisas, conseguir soluções por comparação, enxergar a lógica do todo como algo mais coerente e intrincado. Lembrando que o que é acidente (qualidade), pode ser substância (finalidade, coisa, ente) noutra perspectiva.




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Postado no facebook em 08/02/2014

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