quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O belo

Ao fazer um gesto, a pessoa torna real sua vontade. Dentro de um potencial infinito de ações, o homem pode fazer só uma coisa num determinado instante. Inevitavelmente ele faz o melhor disponível, de acordo com o julgamento próprio. Isso implica em que há uma hierarquia de valores implícita em cada movimento. A mente humana, superior a qualquer computador existente ou futuro, é capaz desse julgamento imediato. Interessante é que a maior parte das nossas decisões é inconsciente. Mesmo que seja consciente, muitas vezes não sabemos traduzir ou explicar objetivamente o porquê de um ato. Inexplicavelmente ele nos parece certo.

Os valores nascem justamente da vivência diária e construção mental. Da mesma forma que a mente opera descobrindo a essência das coisas (definindo objetos e seus atributos, seja pelas ciências, seja diletante), nasce a hierarquia daquilo que cada um julga mais apropriado e menos apropriado.

Se alguém afirma que outro cometeu uma decisão errada, o que podemos imaginar? Que faltou oportunidade de formar os conceitos e informações (pela observação, ou pela instrução). Ou que o erro foi deliberado. Nesse último caso, ainda assim o erro está dentro da tábua de valores da pessoa. Por isso é natural que existam, por exemplo, pessoas fervorosamente contra e a favor do aborto. Então a segunda opção acaba caindo na primeira: tudo é um problema de ignorância.

Mas qual a referência dos valores? Tudo isso dito acima só é válido se houver uma verdade inequívoca. Os relativistas vão negá-la. Para um mesmo fato, eles vão dizer haver mil verdades, ou ainda, que não há de fato nenhuma verdade.

A verdade não se consegue apenas por um ato do intelecto. Ela é um ato também da sensibilidade e da boa vontade. Em primeiro lugar, da sensibilidade.

Uma pessoa sensível vai notar que a realidade tem coisas inexplicavelmente belas, outras que são boas (úteis). Não adianta ser meramente útil: o útil só é bom para uma finalidade e aparentemente o mundo não tem nenhuma finalidade. Mas o belo não. O belo é belo por si, só pelo fato de existir. Num mundo insosso, chato, impessoal, sempre topamos com uma coisa bela que faz nossos olhos alegrarem: eis que a realidade nos brinda com um presente. Esse belo é o sinal da unicidade do mundo: justamente isso que existe e se destaca do resto, uma experiência que agrega na formação dos meus valores.

O mundo não é uma massa, produto do aleatório. Justamente é matéria moldada por belas formas. E as culturas provam isso, ao reconhecerem muitos valores universais. Muitos enfocam o que as religiões, por exemplo, têm de diferente. E o que elas têm de igual? Num mundo aleatório, qual a probabilidade de convergência de valores? Ora a divergência é mais do que natural já que o intelecto funciona quebrando a realidade e montando conceitos

Desde a filosofia antiga (Aristóteles) tem-se o modelo de MATÉRIA vs FORMA, em que a matéria é a potencialidade infinita que é amoldada pela forma (essência, ideia universal). E também de como o homem pensa desde aquilo que é SENSÍVEL (o que vem pelos sentidos e sentimentos), que á agrupado em IMAGENS (que se associam e estão dentro da faculdade memorativa) até conceber os CONCEITOS (que dão nomes, delimitações e definições aos objetos dessa realidade que a princípio se mostra como uma coisa só indiferenciada). A riqueza de experiências resultará numa riqueza de conceitos -- aí deveria estar a educação e não em decorar leis e fórmulas. Assim o homem entra em pleno domínio do mundo, fazendo imagens ricas dele e retornando obras de acordo com seus valores.

Esquematicamente: 
SENSIBILIDADE>  RAZÃO  >  VONTADE  >   RAZÃO    >SENSIBILIDADE
    Realidade>Conceitos>Pensamentos>Arte/Técnica>Realidade


Na razão eu formo os objetos que existem no mundo, suas propriedades e seus valores associados. A partir daí, surge a vontade de agir no mundo, e ideias sobre como agir no mundo, as diversas artes humanas: o direito, a engenharia, a medicina, a tecnologia, a cultura, a moral. Esse é o ciclo do bem, só dificultado quando surge turbidez no trajeto. O erro é algum problema de comunicação no caminho: meus sentidos não funcionam (cegueira, surdez, falta de memória), meu emocional está desestabilizado (estou com raiva, inveja etc.), minha razão não funciona (estou entorpecido, me enchi de falsas doutrinas ou de preconceitos), desejo o mal por desejar (aí está a rebeldia contra Deus).

[Eu ia colocar como título desse artigo "Ordem e valores", mas mudei de ideia]. O mundo é ordenado. Se algo existe, ele deixará seus rastros na realidade e eu poderei compreender com o intelecto (mesmo que de forma limitada e fragmentária). Uma coisa sempre terá infinitas relações com a outra, sob diversos pontos de vista: a própria ciência sempre almeja uma teoria mais abrangente. O mundo é ordenado e dentro dessa ordem está o que vale mais e o que vale menos. A ordem é bela por si, pois as formas são belas. A matéria dá a multiplicidade no tempo e no espaço, mas a forma revelará as proporções. Vou encerrar esse texto enumerando algumas coisas belas existente do meu ponto de vista, numa descrição personalíssima.

[Fim do texto abstrato. Exemplos]

Mais novo, eu estava imerso na educação familiar. Tenho sorte de ter vivências culturais que mostravam o belo na arte, principalmente na música. Criança pequena só enxerga o mundo de um jeito inocente e deslumbrado, tudo é interessante e empolgante. Engraçado que a criança não tem inteligência pra compreender a fundo a malícia, no máximo tem uma péssima impressão de um momento injusto, mas isso não a faz refletir muito: só reforça a beleza das coisas boas que viu. Nesse instante, toda pessoa forma as imagens ricas, principalmente as morais: nesse momento se corrompem os pequeninos, "estuprando" sua inocência com vivências torpes. O produto aí se reflete mais pra frente. [para mais informações, vide o desenvolvimento pelos setênios - abordado pela Antroposofia]

Já na escola, meu primeiro interesse era em artes plásticas. Adorava a imersão num desenho, horas se dedicando a uma criação que, a rigor, é inútil. Mas é bela, mesmo feia. Reunir as riquezas de imagens que temos e tentar expressá-la através da nossa falta de destreza é um grande exercício, o prenúncio de como evoluirmos numa arte humana, seja qual for (que será no futuro a profissão). Tornar ideias em realidade, expressar a sua mente, treinar a comunicação humana: eu não estava consciente de nada disso enquanto estava imerso naquelas atividades lúdicas. Agradeço ao mestre Beto Cury.

Depois (11 anos), veio o interesse pela matemática. E no cume a geometria. A beleza matemática é algo sublime difícil de ser expressa. Dizendo algo e não dizendo nada, eu falaria: "é a arte de dar voltas e sempre chegar num lugar com sentido; é ir e voltar ao ponto de partida, sempre se reafirmando; é a arte da tautologia". Sempre foi muito belo uma dedução lógica, chegar à mesma conclusão por caminhos diversos. E a geometria plana com seus segredos e mistérios: impossível ser mais explícita e clara que seus desenhos com régua e compasso; mas ao mesmo tempo leis escondidas ali debaixo do nosso nariz, ali mesmo no desenho; resoluções puramente geométricas (sem cálculo algébrico). Tudo isso era quase que uma religião pra mim. Agredo à mestre Neli Crocco.

Aos treze anos surgiu meu lazer e minha convicção: a música e a religião. Ambos foram num crescente até hoje. A música reafirmando o mesmo caráter da geometria: o retorno à unidade. O maestro Pedro Cameron, ao qual também sou grato¹, dizia que a música era a arte de partir, gerar uma dissonância (um conflito, algo "mal resolvido") e voltar à consonância (o que acaba muitas vezes sendo a nota inicial da música, chegando numa analogia até religiosa). As relações matemáticas/geométricas² da música só aumentaram minha admiração (estudar Fourier mais pra frente conseguiu acrescentar sempre mais um pouco): ver a relação hierárquica das notas num mesmo tom; enxergar a riqueza e a lógica harmônica da formação das escalas. E o mais impressionante de tudo na música: ela não precisa de toda essa teoria, pois a música se mostra bela diretamente aos sentidos. É a materialização mais perfeita de uma ideia: mesmo o ignorante em matemática enxergará aquela beleza que depende de toda uma ordem matemática por detrás.

E a religião para coroar o que é uma cosmovisão. Pela religião comecei a trazer o pouco de interesse em coisas humanas, conceitos como: injustiça, trabalho, violência, organização social, o mal, o bem, hierarquia das coisas, a expressão das verdades, as virtudes. A verdade como fato objetivo e concreto: Cristo: o sacerdote e o sacrifício, o princípio e o fim, o professor e o exemplo, Deus e homem. Surge o sentimento de pertença e de reconhecimento da ordem. Aparece a busca pela humildade: toda caminhada através da ciência é uma caminhada que topará com o despojar-se dessas "riquezas" (intelectuais) e o reconhecimento da própria pequenez (que a ciência nem é tão grande assim).

[Ignorem a dificuldade dos termos aqui. Pulem se for o caso] Aos 17 anos, na faculdade, apenas recheei um pouco mais essas vivências. Muitas matérias. Como não achar belas as equações de Maxwell, ou mesmo a mecânica vetorial também expressa nas equações de Lagrange (a mesma coisa através de trabalho virtual), ou a grandeza da termodinâmica (e sua incompreensível entropia)? E quando cálculo e álgebra linear acabam convergindo em formulações? Álgebra Linear/Geometria Descritiva... aí está a coroação das minhas analogias da matemática com a universalidade da vida. Achava muito bonito em cálculo numérico a projeção de uma curva qualquer através da análise de Fourier (que transforma tudo em soma de senos) e enxergar isso como a projeção numa operação de álgebra linear (com o produto interno sendo a integral das funções). Eu mesmo não consigo lembrar tudo aqui que eu fazia de analogia de Álgebra Linear com a vida: cada dimensão no espaço vetorial como um aspecto da vida; cada modelo da ciência como um espaço vetorial ao qual se projeta um objeto (assim como na análise de Fourier, que projeta um fenômeno no tempo em seno), simplificando-o; dimensões linearmente dependentes (vetor com ângulo diferente de 90º) ou independentes (=90º) como questões na vida que têm a ver ou não entre si...

Na faculdade pude entrar em contato com a filosofia. Me amiguei um pouco. Mas foi vendo a própria universidade que acabei pegando um pouco de aversão a ela. Existia um pouco de adoração ao conhecimento, os professores como sacerdotes e alunos como seres em iniciação oculta. Eu até adoraria ser professor. Pra mim um bom professor é aquele que acha aquilo que ensina belo demais e consegue passar essa beleza. Se por um lado a carreira universitária me parece tão burocrática (produzindo papers e alunos em série) como outro emprego público qualquer, por outro a meritocracia pode ser também simpatocracia. E a universidade é a esperança do mundo, como se a esperança pudesse ser depositada num amuleto e não na resolução da realidade por inteiro (que envolve ação moral, não ensinada nas escolas).

[Fim dos exemplos. Conclusão]

Conforme o tempo passa, o deslumbramento e ingenuidade da criança se tornam a indiferença e a malícia do adulto. Por isso, a experiência do belo deveria ser considerada na formação humana verdadeira e o momento é a infância. Mesmo com enxurrada de desânimo que a vida nos dá com diversas decepções e injustiças, o mundo ainda dos dá presentinhos belos. Eles são capazes de suscitar uma alegria profunda, como quem ainda vê: "desse mundo ainda brota algo bom, ainda há esperanças".

Justamente o belo pode manter a chama acesa. Mesmo um adorno inútil, como pode deixar uma coisa simples tão graciosa? O capricho é uma beleza em si, precisamente numa sociedade em que se dedica o mínimo e se quer sugar o máximo dos outros. A cortesia, a gentileza, a polidez... o cuidado, a dedicação, a compaixão.

O belo é objetivo. Mesmo os gostos sendo subjetivos. Subjetivo é a perspectiva: ao entrar em contato com algo, uma pessoa o confronta com um estoque de IMAGENS particular seu (seu ponto de vista), mas o objeto continua sempre ali, o mesmo. O belo sinaliza para o universal e ao mesmo tempo é palpável, é algo que se pode conferir, mesmo que num instante de felicidade efêmero. Mesmo cada um tendo suas experiências diversas do belo, ele aponta para a fonte única, a proporção universal. Já o bom e o verdadeiro serão sempre relativizados por serem ideias:o belo é um fato. Como já disse Pôncio Pilatos: "quid est veritas"?

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NOTAS:
1- gratidão pela formação musical também a meu pai e avô, dos quais herdei a genética e sensibilidade. Também à Dagma Eid.
2- caso haja interesse, vide anexo em http://www.ouvirativo.com.br/?p=1020


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Postado no facebook em 12/11/2013

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